Kaleidoscópio Literário
a expressão de Kathleen Lessa
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Meu Diário
22/06/2014 06h38
PÁLPEBRAS DE NEBLINA (Caio Fernando Abreu)

 

 

Texto tristíssimo, para ser lido ao som de Giulietta Masina, de Caetano Veloso. (*)

Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, até mesmo um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu  estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante e persistente com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o que vai acontecer?Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá.  Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia.

Resolvi andar. Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrinas,automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono. Da Praça Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquanto lembrava uns versos de Cecília Meireles, dos Cântico: “Não digas: 'Eu sofro’. / Que é que dentro de ti és tu?/ Que foi que te ensinaram/ que era sofrer?”. Mas não conseguia parar. Surdo a qualquer zen-budismo o coração doía sintonizado com o espinho. Melodrama: nem amor, nem trabalho, nem família, quem sabe nem moradia — coração achando feio o não-ter. Abandono de fera ferida, bolero radical. Última das criaturas, surto de lucidez impiedosa da Big Loira de Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a chorar. Troquei os óculos de lentes claras pelos negros ray-ban — filme. Resplandecente de infelicidade, eu subia a Rua Augusta no fim de tarde do dia tão idiota que parecia não acabar nunca. Ah! como eu precisava tanto que alguém me salvasse do pecado de querer abrir o gás. 

Foi então que a vi. Estava encostada na porta de um bar. Um bar brega, aqueles da Augusta-cidade, não da Augusta-Jardins. Uma prostituta, isso era o mais visível nela. Cabelo mal pintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo. Explícita, nada sutil, puro lugar-comum patético. Em pé, de costas para o bar, encostada na porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro; na esquerda, um copo de cerveja. E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem gemidos nem soluços, a prostituta na frente do bar chorava devagar, de verdade. A tinta da cara escorria com as lágrimas. Meio palhaça, chorava olhando a rua. Vez em quando, dava uma tragada no cigarro, um gole na cerveja. E continuava a chorar — exposta, imoral, escandalosa — sem se importar que a vissem sofrendo. Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para sua própria dor que estava, também, meio cega. Via pra dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou. Eu, também, não. Não era um espetáculo imperdível, não era uma dor reluzente de néon, não estava enquadrada ou decupada. Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitando aquela camada casca-grossa da vida. Sem o recurso dessas benditas levezas nossas de cada dia — uma dúzia de rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos.

Comecei a emergir. Comparada à dor dela, que ridícula a minha, de brasileiro-médio-privilegiado. Fui caminhando, mais leve. Mas só quando cheguei à Paulista compreendi um pouco mais. Aquela prostituta chorando, além de eu mesmo, era também o Brasil.
Brasil 87: explorado, humilhado, pobre, escroto, vulgar, maltratado, abandonado, sem um tostão, cheio de dívidas, solidão, doença e medo. Cerveja e cigarro na porta do boteco vagabundo: Carnaval, futebol. E lágrimas.
Quem consola aquela prostituta? Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvez sinta coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo?

Vim pra casa humilde. Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu "dói tanto", contei da moça vadia sozinha chorando, bebendo e fumando (como num bolero). E quando ele perguntou "por quê?", compreendi ainda mais. Falei: "Porque é daí que nascem as canções". E senti um amor imenso. Por tudo, sem pedir nada de volta.
Não ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto inseguro, assustado: a que será que se destina?

 

Caio Fernando Abreu
O Estado de S. Paulo, 18/11/1987

(texto publicado a posteriori em "Pequenas Epifanias")

 

(*) O autor se refere à música "Guilietta Massina", de Caetano Veloso, cujo primeiro verso é "Pálpebras de neblina, pele d'alma". Caio recomenda a leitura desse texto ouvindo-a.

Publicado por KATHLEEN LESSA
em 22/06/2014 às 06h38
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03/06/2014 10h18
AO TEMPO CERTO (Péricles Alves de Oliveira)

 

AO TEMPO CERTO*

 

O mundo é como
uma caixa de fósforos
em meio à noite
escura
- com suas engenhosas
rodas- gigantes
e seus perniciosos
cata-ventos -;

é, pois, preciso saber
a hora de acender a chama
ou de se recolher
à cama:
e, sobretudo
- o lobo niilista sempre
espreita silente -,

sem te esqueceres
de guardar
a última fluorescência
comigo.

 

Péricles Alves de Oliveira

*(interação com o poema "Procura-se", de Kathleen Lessa)

 

Publicado por KATHLEEN LESSA
em 03/06/2014 às 10h18
 
21/05/2014 03h11
SOBRE A MORTE E O MORRER (Rubem Alves)


O que é vida?
Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano?
O que e quem a define?



Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...

Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.

Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...”

Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...”

Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.

Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".

Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética.

Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.

Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?

Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.

Muitos dos chamados "recursos heróicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".

Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.

Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.


Texto publicado no jornal “Folha de São Paulo”, Caderno “Sinapse” do dia 12-10-03.

Publicado por KATHLEEN LESSA
em 21/05/2014 às 03h11
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16/05/2014 23h33
FANTASMAS (Juanan)

 

Hay épocas,
momentos,
en los que dejamos que los fantasmas
se lleven nuestra esencia;
dejamos que algo invisible nos consuma,
y alimentados por la culpa
o la responsabilidad,
que se hacen más grandes día a día.


Y aunque al despertar
tu primer pensamiento del día
le pertenezca,
al igual que el último,
los fantasmas del pasado
se han llevado el mando que controla tu vida,
y eres incapaz de expresar todo lo que sientes.


Te paras,
y te das cuenta de que son sombras,
es pasado,
y aunque el mundo te perdone
te das cuenta que el que se tiene que perdonar
es uno mismo.

"El perdón ajeno calma, pero el propio da la paz para poder vivir".

 

Date un regalo para poder vivir:
Perdonate a ti mismo

 

 

Juanan    (España)

Publicado por KATHLEEN LESSA
em 16/05/2014 às 23h33
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06/05/2014 16h15
DESESPERANÇA (Manuel Bandeira)

 

 

 

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo. . .

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado,
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspeto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

- Ah, como dói viver quando falta a esperança!

 

 

imagem: google

Publicado por KATHLEEN LESSA
em 06/05/2014 às 16h15
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