Kaleidoscópio Literário
a expressão de Kathleen Lessa
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Meu Diário
06/01/2012 08h56
EU SEI, MAS NÃO DEVIA (Marina Colassanti)

 

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(de 1972)

Publicado por KATHLEEN LESSA
em 06/01/2012 às 08h56
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05/01/2012 11h31
PRECISO, para (Marina Colassanti)

 

Preciso que um barco atravesse o mar
lá longe
para sair dessa cadeira
para esquecer esse computador
e ter olhos de sal
boca de peixe
e o vento frio batendo nas escamas.


Preciso que uma proa atravesse a carne
cá dentro
para andar sobre as águas
deitar nas ilhas e
olhar de longe esse prédio
essa sala
essa mulher sentada diante do computador
que bebe a branca luz eletrônica
e pensa no mar.


 

Marina Colassanti (Etiópia, 26 /9/1937)
Contista, cronista, poetisa, romancista e jornalista, é esposa do poeta e escritor Affonso Romano de Sant'Anna

 

Publicado por KATHLEEN LESSA
em 05/01/2012 às 11h31
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08/12/2011 04h22
NUM MONUMENTO À ASPIRINA (João Cabral de Melo Neto)

 

Num Monumento à Aspirina

João Cabral de Melo Neto

 

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

*

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

 

(Em "A educação pela pedra" - 1966)
 

Publicado por KATHLEEN LESSA
em 08/12/2011 às 04h22
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03/12/2011 23h41
CALAR-SE ANTE VIOLÊNCIA, DESRESPEITO OU INJUSTIÇA?

 

 

Lembradas as palavras de Bertold Brecht (1898-1956):

 

Primeiro levaram os negros

Mas não me importei com isso:

Eu não era negro.

Em seguida levaram alguns operários

Mas não me importei com isso:

Eu também não era operário.

Depois prenderam os miseráveis

Mas não me importei com isso

Porque eu não sou miserável.

Depois agarraram uns desempregados

Mas como tenho meu emprego

Também não me importei.

Agora estão me levando

Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo.

 

__ As de Martin Niemöller, teólogo, líder protestante da resistência Nazista, que adaptou o poema para um sermão, por volta de 1933:

 

Quando os nazistas levaram os comunistas, eu calei,
porque, afinal, eu não era comunista...

Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei,
porque, afinal, eu não era social-democrata.

Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei,

porque, afinal, eu não era sindicalista.

Quando levaram os judeus, eu não protestei,
porque, afinal, eu não era judeu.

Quando eles levaram a mim,

não havia mais quem protestasse.

 

__ De Claudio Humberto (colunista, jornalista) em 2007:

 

Primeiro eles roubaram nos sinais, mas não fui eu a vítima,

Depois incendiaram os ônibus, mas eu não estava neles;

Depois fecharam ruas, onde não moro;

Fecharam então o portão da favela, que não habito;

Em seguida arrastaram até a morte uma criança, que não era meu filho...

 

 

__ De Eduardo Alves da Costa, "No caminho com Maiakovski"  (anos 60) deixo um pequeno trecho. Noutra página desse blog o poema na íntegra.

 

Na primeira noite eles se aproximam
Roubam uma flor do nosso jardim,
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

 

 

Eu me importo e não me calo.

Kathleen

 

 

Publicado por KATHLEEN LESSA
em 03/12/2011 às 23h41
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01/12/2011 19h52
O QUE DIGO E O QUE VOCÊ ENTENDE


 

Publicado por KATHLEEN LESSA
em 01/12/2011 às 19h52
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Página 19 de 40
Os textos da autora têm registro no ISBN. Plágio é crime.