Kaleidoscópio Literário
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Meu Diário
25/11/2010 00h55
O LADO LIXO DA INTERNET [Clóvis Rossi]


A ombudsman da Folha, Suzana Singer, no domingo, e o especialista bielorrusso radicado nos Estados Unidos, Evgeny Morozov, na segunda, disseram sobre a internet o que eu há muito tinha vontade de dizer, mas estava esperando vozes mais autorizadas.

Suzana, sob o sugestivo título "Comente com moderação", cita cartas publicadas nesta Folha.com que são lixo puro, para emendar: "A rede, com o seu manto protetor do anonimato, libera o lado mais perverso e raivoso, como se viu recentemente na onda antinordestina que surgiu depois da vitória de Dilma Rousseff".
Quase perfeito, cara Suzana. Quase porque esse lado "perverso e raivoso" vem sendo liberado faz muito mais tempo.
Menos mal que a ombudsman puxou também para o seu texto comentário de uma leitora não identificada que diz: "Os comentários na Folha.com me fazem sentir vergonha de pertencer à raça humana". Bem-vinda ao clube, cara leitora, embora tema que sejamos muito solitários nele.
Na segunda-feira, Morozov ia um pouco na mesma linha mas apontando problemas ainda mais graves.
Primeiro problema: "Alguns governos autoritários estão fazendo experimentos com propaganda ideológica e se tornarão muito ativos na internet. Nada na rede dificulta espalharem sua mensagem com mais ressonância do que nunca".
Segundo problema: "Operações sigilosas em que se pagam blogueiros ou se subsidiam sites para tentar mudar a opinião pública".
O especialista citou o Kremlin e o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, mas, na recente campanha eleitoral brasileira, ficou evidente que havia blogueiros pagos para destilar veneno.
Aliás, um dos problemas da internet é que você nunca sabe se este ou aquele blogueiro é apenas um legítimo interessado em participar do debate público ou é financiado por alguém com objetivos propagandísticos ou piores.
É desanimador verificar, nos comentários à colunas e blogues, a predominância de dois tipos de atitudes, ambas calhordas: uma é xingar, em vez de argumentar.
A outra é mais canalha: o remetente atribui um rótulo a quem faz um comentário como forma de desqualificar o interlocutor, em vez de responder a seus argumentos.
Funciona mais ou menos assim: João dos Anzóis Carapuça critica o Corinthians. Vem alguém e diz que João é palmeirense ou sãopaulino. Fica, por isso, dispensado de discutir os argumentos do João.
Vale na política, na economia, na religião, até no debate sobre meio-ambiente.
Um caso com algum parentesco com o exemplo acima é a polêmica sobre a premiação a Chico Buarque com o "Jabuti", tido como o principal prêmio literário do Brasil.
A premiação de "Leite Derramado", definida pelo público, foi contestada pela Editora Record, que deixou no ar o mesmo tipo de alegação já mencionado: Chico teria sido premiado por ter feito campanha por Dilma Rousseff, afinal tão popular que acabou eleita presidente da República. Não seria, portanto, pelo seu talento literário.
Todo o mundo tem o direito de gostar ou de odiar o livro. Eu ainda não li, mas li o anterior, "Budapeste", delicioso, daqueles que você pega e não consegue largar. Para o meu gosto, portanto, o talento de Chico está comprovado --e não só pelas suas músicas-- desde sempre. Talento reconhecido durante a ditadura, que o censurava, pela democracia antes de Lula chegar ao poder e depois também. Não há portanto motivos para colocar um fator político à frente da discussão de seu valor como escritor.
Claro que todo o mundo pode --e até deve-- discutir tudo o que Chico escreve, músicas ou livros. Mas que tal manter a discussão no âmbito da literatura ou da música, sem meter no meio outros fatores, como simpatias políticas? Vale para os comentários a textos de colunistas e blogueiros.
Clóvis Rossi
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".
Publicado por KATHLEEN LESSA
em 25/11/2010 às 00h55
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10/11/2010 12h07
ARGILA (Raul de Leoni)
ARGILA


Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis)

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...


Publicado por KATHLEEN LESSA
em 10/11/2010 às 12h07
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09/11/2010 22h08
ANJO DE QUINTANA (José Marins)
 
Anjo Malaquias
onde andam seus pés
de acompanhar poetas,
desde que Quintana se foi?

 
Anjo Malaquias
nada tenho para te oferecer,
além de receios ou passos vãos,
viajo sorvido pelo sonho.

 
Anjo Malaquias
se puder olhar por mim,
teus olhos de poesia e luz,
vela por meus versos tão miúdos.

 
Anjo Malaquias
quando vier com suas asas
de transparência e luar,
traga-me da alegria e do humor
de Mário Quintana.

 
Um pouco que seja
de quintanares letras,
e siga-me na estrada do poeta
essa que faço na esteira dos nadas.


imagem: Antonio C. Castejón


Publicado por KATHLEEN LESSA
em 09/11/2010 às 22h08
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02/11/2010 02h30
A COMPREENSÃO DO SOFRIMENTO (Krishnamurti)
Se não há compreensão do sofrimento, não há sabedoria; o fim do sofrimento é o começo da sabedoria. Para se compreender o sofrimento e dele se ficar livre completamente, requer-se compreensão, não só do sofrimento individual, particular, mas também do imenso sofrer humano. Para mim, se não estamos totalmente livres do sofrimento, não pode haver sabedoria e tampouco terá a mente possibilidade de investigar deveras essa imensidade que se pode chamar Deus, ou outro nome qualquer.

A maioria de nós está sujeita ao sofrimento em diferentes formas: nas relações, quando ocorre a morte de alguém, quando não podemos preencher-nos e decaímos até nos reduzirmos a nada, ou quando tentamos realizar algo, tornar-nos importantes e tudo redunda em completo malogro. E temos também o “processo” do sofrimento no plano físico: doença, cegueira, invalidez, paralisia, etc. Por toda a parte se encontra essa coisa extraordinária chamada “sofrimento” — com a morte à espreita em cada volta do caminho. E não sabemos enfrentar o sofrimento e, assim, ou o divinizamos ou o racionalizamos, ou, ainda, tratamos de evitá-lo. Ide a qualquer igreja cristã e vereis que lá se diviniza o sofrimento, tornam-no algo de grandioso, de sagrado, e diz-se que só pelo sofrimento, só pela mão de Cristo, o Crucificado, se pode encontrar Deus. No Oriente, há métodos próprios de fuga, outras maneiras de evitar o sofrimento; e é, para mim, um fato singular serem tão raros — tanto no Oriente como no Ocidente — os que estão verdadeiramente livres do sofrimento.

Seria maravilhoso se, no processo de nosso escutar — sem emocionalismo nem sentimentalismo — o que nesta manhã se está dizendo, pudéssemos, antes de sairmos daqui, compreender realmente o sofrimento e dele ficar completamente livres; porque, então, já não haveria automistificação, nem ilusões, nem ansiedades, nem medo, e o cérebro poderia funcionar clara, penetrante, logicamente. E, então, talvez chegássemos a conhecer o amor.


Ora, para se compreender o sofrimento é necessário investigar todo o “processo” do tempo. Tempo é sofrimento, não só sofrimento do passado, mas também sofrimento que inclui o futuro — a idéia de chegar, a esperança de algum dia nos tornarmos algo, com sua inevitável sombra de frustração. Para mim, essa idéia de consecução, de “vir a ser” algo no futuro (e isso é tempo psicológico) representa o sofrer máximo — e não o fato de perder um filho, de ser abandonado pela mulher ou marido, ou de se não alcançar êxito na vida. Tudo isso me parece bastante trivial, se se me permite em pregar esta palavra, que espero não seja mal compreendida. Há um sofrimento muito mais profundo, que é o tempo psicológico: o pensar que mudarei em anos futuros; que, se se me dá tempo, me transformarei, quebrarei as cadeias do hábito, alcançarei a liberdade, a sabedora, Deus. Tudo isso exige tempo — e este, para mim, é o sofrimento máximo. Mas, para podermos aprofundar o problema, temos de descobrir porque há sofrimento dentro em nós — essa onda de sofrimento que nos envolve e aprisiona. Compreendendo, primeiramente, o sofrimento existente em nós, talvez possamos também compreender o sofrimento humano coletivo, o desespero da humanidade.

Por que sofremos? E tem fim o sofrimento? Há tantas maneiras de sofrermos! A doença é uma forma de sofrimento — a incapacidade de pensar, por debilidade do cérebro, e tantas outras variedades da dor física. Temos, depois, todo o campo do sofrimento psicológico — o sentimento de frustração, por não se poder realizar nada, ou a falta de capacidade, de compreensão, de inteligência, e também esta constante batalha dos desejos antagônicos, da autocontradição, com suas ânsias e desesperos. E há, ainda, a idéia de nos transformarmos através do tempo, de nos tornarmos melhores, mais nobres, mais sábios — idéia que também encerra infinito sofrimento. E, por último, o sofrimento ocasionado pela morte, o sofrimento da separação, do isolamento, o sofrimento de nos vermos completamente sós, isolados e sem relação com coisa alguma.

Todos conhecemos essas variadas formas de sofrimento. Os eruditos, os intelectuais, os virtuosos, os religiosos de todo o mundo, vêem-se tão torturados como nós pelo sofrimento, e se dele existe alguma saída, ainda não a encontraram. Investigar bem profundamente em nós mesmos é saber que esta é a primeira coisa que desejamos: pôr fim ao sofrimento; mas não sabemos de que maneira começar. Estamos muito bem familiarizados com o sofrimento, vemo-lo em outros e em nós mesmos, e ele se acha no próprio ar que respiramos. Ide a qualquer parte, recolhei-vos a um mosteiro, caminhai pelas ruas apinhadas — o sofrimento está sempre presente, declarado ou oculto, expectante, vigilante.


Ora, de que maneira enfrentamos o sofrimento? Que fazemos em relação a ele? E como teremos possibilidade de nos libertarmos dele, não apenas superficialmente, porém totalmente, de modo que se torne completamente inexistente? Estar completamente livre de sofrimento não significa ausência de sentimento, de amor, de compaixão, falta de bondade, de compreensão de outrem. Pelo contrário, na completa liberdade, nesse estado livre de sofrimento, não há indiferença. É uma liberdade que traz grande sensibilidade, receptividade; e, como se alcança essa liberdade? Todos conheceis o sofrimento, não lhe sois estranhos. Ele está sempre presente. E como o enfrentais? Apenas superficialmente, verbalmente?

Tende a bondade de seguir isto. Passo a passo, caminhemos juntos, até o fim. Tentai, nesta manhã, escutar com atenção completa, estar bem cônscios de vossas reações e penetrar profundamente, junto comigo, este problema do sofrimento. Mas, isto não significa seguir-me — coisa extremamente absurda. Mas se, juntos, pudermos compreender esta coisa, investigá-la ampla e profundamente, então, talvez, ao sairdes daqui, possais olhar para o céu e nunca mais serdes atingidos pelo sofrimento. Então, não mais haverá medo; e, uma vez livres de todo temor, aquela Imensidade poderá tornar-se vossa companheira.

Assim, como enfrentais o sofrimento? Parece-me que, em geral, o enfrentamos muito superficialmente. Nossa educação, nossa instrução, nosso conhecimento, as influências sociológicas a que estamos expostos — tudo isso nos torna muito superficiais. A mente superficial é aquela que se refugia na igreja, em alguma conclusão, conceito, crença ou idéia. Tudo isso são refúgios para a mente em sofrimento. E, quando nenhum refúgio encontrais, construís em torno de vós uma muralha e vos tornais acrimoniosos, duros, indiferentes, ou buscais a fuga em alguma reação neurótica, fácil. Todas essas fugas ao sofrimento impedem a investigação mais aprofundada. Espero me estejais acompanhando, porque é justamente isto o que faz a maioria de nós.


Pois bem; observai um cérebro superficial — ou mente; notai, por favor que, quando digo “mente” ou “cérebro”, refiro-me à mesma coisa. Outro dia estivemos considerando a distinção entre “mente” e “cérebro”, mas tal distinção é só verbal, sem importância. Empregarei a palavra “mente” e espero que sigais e compreendais o que se irá dizer.

A mente superficial não pode resolver este problema do sofrimento, porque sempre procura evitar o sofrimento. Foge ao fato — o sofrimento — por meio de uma reação fácil e imediata. Se tendes uma forte dor de dentes, naturalmente logo tratais de procurar o dentista, porque desejais livrar-vos dessa dor física; e isso é uma reação normal e correta. Mas, a dor psicológica é muito mais profunda e sutil, e não há médico, não há psicólogo, não há nada que vos possa extingui-la. No entanto, vossa reação instintiva é fugir dela. Tratais de ligar o rádio, de ver televisão, de ir ao cinema — sabeis quantas distrações a civilização moderna inventou. Qualquer espécie de entretenimento, seja uma cerimônia religiosa, seja uma partida de futebol, é essencialmente a mesma coisa, mera fuga à vossa aflição, ao vosso vazio interior; e é isto o que estamos fazendo em toda a parte: buscando em diferentes formas de entretenimento o auto-esquecimento.

E, também, é a mente superficial que procura explicações. Diz: “Desejo saber porque sofro. Porque devo eu sofrer, e vós não?” Está cônscia de não ter praticado, na vida, nenhuma iniqüidade e, assim, aceita a teoria de vidas passadas e a idéia disso que na Índia se chama karma — causa e efeito. Diz ela: “Pratiquei antes alguma ação injusta, e agora estou passando por ela”; ou “Estou agora fazendo algo de bom, e colherei no futuro os correspondentes benefícios”. É assim que a mente superficial se deixa enredar nas explicações.


Observai, por favor, vossa própria mente, observai como vos livrais de vossos sofrimentos com explicações, como vos absorveis no trabalho, em idéias, ou vos apegais à crença em Deus ou numa vida futura. E, se nenhuma explicação ou crença tiver sido satisfatória, recorreis à bebida, ao sexo, ou vos tornais mordaz, duro, acrimonioso, melindroso. Consciente ou inconscientemente, é isso o que de fato ocorre com cada um de nós. Mas, a ferida do sofrimento é muito profunda. Ela vem sendo transmitida de geração em geração, de pais a filhos, e a mente superficial nunca retira a atadura que cobre essa ferida: ela não sabe, em verdade, o que é o sofrimento, não o conhece intimamente. Tem apenas uma idéia a seu respeito. Tem uma imagem, um símbolo do sofrimento, mas nunca se encontra com ele próprio; só se encontra com a palavra “sofrimento”. Compreendeis? Ela conhece a palavra “sofrimento”, mas não estou certo se conhece o sofrimento.

Conhecer a palavra “fome” e sentir realmente fome, são duas coisas muito diferentes, não? Quando sentis fome, não vos satisfazeis com a palavra “comida”. Quereis comida — o fato. Ora, quase todos nos satisfazemos com palavras, símbolos, idéias, e com as nossas reações a essas palavras, de modo que nunca estamos em intimidade com o fato. Quando subitamente nos vemos frente-a-frente com o fato do sofrimento, isso nos causa um choque, e nossa reação é a fuga a esse fato. Não sei se já notastes isso em vós mesmo. Tende a bondade de observar o estado de vossa própria mente, e não fiqueis meramente escutando as palavras que estão sendo proferidas. Nunca nos encontramos com o fato, nunca “vivemos com ele”. Vivemos com uma imagem, com a memória do que foi, e não com o fato. Vivemos com uma reação.

Ora, se ao enfrentar o sofrimento a mente tem um motivo, isto é, se deseja fazer algo a respeito do sofrimento, não é possível compreendê-lo, assim como também não é possível haver amor, se há motivo para amar. Entendeis? Em geral, temos um motivo quando encaramos o sofrimento: desejamos fazer alguma coisa em relação a ele. Isto é, suponhamos que eu tenha perdido alguém, por morte; profundamente, psicologicamente, já não posso obter o que dessa pessoa desejava, e vejo-me a sofrer. Se nenhum motivo tenho, ao olhar o sofrimento, ele é ainda sofrimento, ou coisa totalmente diferente? Estais seguindo?


Digamos que meu filho morre, e eu estou a sofrer porque me vejo só. Nele eu depositara todas as minhas esperanças e, agora, todo o meu mundo desabou. Desejara estabelecer para mim próprio uma certa espécie de imortalidade, uma continuidade, através de meu filho; ele deveria herdar meu nome, meus haveres, continuar com o meu negócio, e o acabar de tudo isso causou-me um choque. Ora, posso compreender o sofrimento em que me acho, se algum motivo existe, que me impele a olhá-lo? E, se existe, atrás do amor, algum motivo, isso é amor? Por favor, não concordeis comigo: observai-vos, apenas. Por certo, não deve haver motivo algum, se desejo compreender o sofrimento, se desejo descobrir a profundeza plena e a significação do sofrimento — ou do amor, pois os dois andam sempre juntos. A morte, o amor e o sofrimento são inseparáveis, estão sempre juntos, e também os acompanha a criação; mas, esta é outra questão, que examinaremos noutra oportunidade. Se desejo compreender profundamente, completamente, o fato do sofrimento, não posso ter um motivo a ditar minha reação ao fato. Só posso viver com o fato e compreendê-lo, quando nenhum motivo tenho. Entendeis? Se não, podeis fazer-me perguntas, depois, a respeito deste ponto.

Se vos amo porque podeis dar me alguma coisa — vosso corpo, vosso dinheiro, vossa lisonja, vossa companhia o que quer que seja — isso por certo, não e amor, e é claro que também vós obtendes algo de mim, e essa permuta, para a maioria de nós se chama amor. Sei que encobrimos isso com palavras bonitas, mas, atrás dessa fachada, está a ânsia de ter, possuir, ser dono.

Agora, sofrimento não é autocompaixão? De certa maneira, fostes despojado de alguma coisa, vossas relações com outro redundaram em fracasso, não vos preenchestes no sentido de serdes reconhecido como pessoa importante, em atividades de reforma social, em atividades artísticas e tantas outras coisas mais — e todas as correspondentes frivolidades; assim, há sofrimento. Compreender o sofrimento é viver com ele, olhá-lo, conhecê-lo como realmente é; mas não tendes possibilidade de conhecê-lo quando o olhais com um motivo — que supõe o tempo. A mente superficial, incessantemente ocupada em melhorar-se, em lastimar-se, em torturar-se numa dada relação; desejosa de libertar-se do sofrimento sem enfrentar o fato — essa mente prosseguirá sofrendo indefinidamente. O fato é que estais sozinho. Em virtude de vossa educação, de vossas atividades, pensamentos e sentimentos, vos isolastes profundamente em vosso interior e não sois capaz de viver com esse extraordinário sentimento de solidão, não sabeis o que ele significa, porque dele sempre vos abeirais com uma palavra que desperta o medo.

Estais vendo, pois, a dificuldade — as maneiras sutis com que a mente preparou suas vias de fuga, tornando-se incapaz de viver com essa coisa extraordinária que chamamos “sofrimento”. Para se ser livre do sofrimento, é necessário compreender, consciente e inconscientemente, todo o seu ‘processo”, e isso só é possível vivendo-se com o fato, olhando-o sem motivo. Deveis perceber as manhas de vossa mente, suas fugas, as coisas aprazíveis a que estais apegado e as coisas desagradáveis de que desejais livrar-vos com rapidez.

Cumpre observar o vazio, o embotamento e a estupidez da mente que só trata de fugir. E pouca diferença faz, se se foge para Deus, para o sexo, ou para a bebida, porquanto todas as fugas são essencialmente a mesma coisa. Compreendeis?

Que sucede quando perdeis alguém, arrebatado pela morte? A reação imediata á uma sensação de paralisia, e ao sairdes desse estado vos encontrais com o sofrimento. Ora, que significa esta palavra — “sofrimento”? — A camaradagem, os colóquios ditosos, os passeios e tantas outras coisas agradáveis que fizestes e planejáveis fazer em companhia um do outro — tudo isso vos foi arrebatado num segundo, e ficastes vazio, desamparado, sozinho, É contra isso que estais protestando, é contra isto que vossa mente se revolta: ter ficado a sós consigo, isolada, vazia, sem amparo. Ora, o que verdadeiramente importa é viver com esse vazio, com ele viver sem reação alguma, sem racionalizá-lo, sem dele fugir com recorrer a médiuns espiritistas, à doutrina da reencarnação, e outras futilidades que tais; viver com ele, com todo o vosso ser. E se, passo a passo, examinardes bem o fato, vereis que há um findar do sofrimento — um findar real, e não simplesmente verbal, não o findar superficial, resultante de fuga, de identificação com um conceito ou devotamento a uma idéia. Vereis que nada há para proteger, porquanto a mente está toda vazia e já não reage no sentido de preencher o seu vazio; e quando assim o sofrimento termina completamente, tereis encetado uma outra jornada — jornada sem fim e sem começo. Existe uma imensidade que ultrapassa todas as medidas, mas nesse mundo não ingressareis sem a prévia e total extinção do sofrimento.

Krishnamurti - palestra 18 de julho de 1963, no ICK – SAANEN, Suíça
Do livro: "Experimente um novo caminho "

 
Publicado por KATHLEEN LESSA
em 02/11/2010 às 02h30
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30/10/2010 02h01
APAIXONAMENTO (Airton Amélio)
Apaixonamento: a teoria de Stendhal

Existem várias teorias sobre o apaixonamento. Uma delas, que é muita aceita entre os pesquisadores desse fenômeno e que tem recebido respaldo de várias pesquisas científicas, é a de Stendhal. (Essa teoria foi apresentada no livro “Do Amor”, desse autor. Editora Martins Fontes – tradução do original em francês).
Vamos examinar aqui três dos requisitos que, segundo essa teoria, explicam o nascimento do amor: admiração, esperança e insegurança.

Admiração

Admirar significa reconhecer na outra pessoa qualidades que gostaríamos de ter. A importância da admiração para o nascimento do amor é facilmente reconhecida por quase todo mundo. Essa importância também é prevista pelas principais teorias que tratam desse fenômeno e também é coerente com os resultados dos estudos sobre a escolha de parceiros amorosos.
A maioria das pessoas deixa-se guiar, intuitivamente, pela admiração quando tenta conquistar e também quando se apaixona e escolhe um parceiro amoroso. As pessoas, quando querem conquistar um parceiro, fazem o possível para despertar a sua admiração. Por exemplo, elas capricham na auto-apresentação, exibem recursos e melhoram a aparência. Diversas pesquisas verificaram que os parceiros mais valorizados são aqueles que parecem mais inteligentes, que têm nível social, nível econômico e nível de escolaridade um pouco acima daqueles dos seus pretendentes e são saudáveis e bonitos. Ou seja, são pessoas admiráveis aos olhos desses pretendentes.
É realmente difícil imaginar que o amor possa nascer sem algum tipo de admiração. A admiração geralmente é suficiente para produzir uma espécie de fascínio que pode fazer o admirador ficar hipnotizado pela pessoa admirada e levá-lo a fazer coisas completamente fora do seu padrão de conduta. Isto acontece, por exemplo, com adolescentes quando estão na presença de artistas ou de cantores que admiram. Essa admiração  faz com que eles entrem em uma espécie de delírio. Certas meninas, que na vida diária são recatadas e tímidas, se escondem nos armários e debaixo da cama  dos seus ídolos e aceitam fazer sexo com eles. A admiração em relação a algumas qualidades também pode produzir certas aberrações perceptuais em relação a outros atributos da pessoa admirada. Por exemplo,  um atleta que é excepcional no futebol, boxe ou no basquete também a adquire a propriedade de fascinar certas pessoas em outros setores, nada relacionados àqueles onde eles realmente possuem habilidades admiráveis, como a política  e a religião.

Muitas teorias psicológicas sobre o amor reconhecem que a admiração é um dos requisitos do apaixonamento. Por exemplo, a Teoria da Expansão do Eu, apresentada por Elaine N. Aron e Arthur Aron1 , afirma que para acontecer o apaixonamento é necessário haver admiração. Segundo essa teoria, admirar significa reconhecer qualidades excepcionais na outra pessoa. Essa teoria também afirma que uma maneira de incorporar essas qualidades admiradas na outra pessoa seria associar-se amorosamente com ela. O relacionamento amoroso com essa pessoa seria uma  maneira de integrar as qualidades admiradas ao eu do admirador, uma vez que os casais se vêm e são visto como uma unidade.
Esta teoria aponta, portanto, um caminho para a conquista: quando a associação amorosa com uma pessoa oferece possibilidades de crescimento psicológico e/ou ampliação dos horizontes pessoais, isto aumenta as probabilidades que a pessoa cujos horizontes serão expandidos se apaixone pela outra que pode expandi-los.

Esperança

“Só vou gostar de quem gosta de mim” (Canção interpretada, entre outros, por Caetano Veloso e Roberto Carlos. Composição de Rossini Pinto)
Esta teoria afirma que também é necessário haver esperança  para que o apaixonamento aconteça: é necessário crer que é possível formar uma unidade amorosa com a outra pessoa.
A necessidade da presença da esperança de reciprocidade para que o amor possa nascer mostra como a natureza é sábia. Se bastasse a admiração para o nascimento do amor, este sentimento seria tremendamente disfuncional. Por exemplo, como em geral tendemos a admirar aquelas pessoas que tem um nível sócio-econômico mais alto do que o nosso, caso a admiração fosse suficiente para provocar o nascimento do amor quase todo mundo de um nível social estaria apaixonado pelas pessoas dos níveis sociais mais altos do que os delas. Isso não acontece porque não há esperança de reciprocidade desse sentimento e também porque não há esperança de que seja possível desenvolver um relacionamento duradouro e satisfatório entre pessoas que discrepem muito nesses setores.
A necessidade da esperança para o nascimento do amor também foi reconhecida pela teoria psicobiológica proposta por David Buss. Esse autor usou denominou os sinais que são apresentados por alguém que realmente está interessado em desenvolver um relacionamento duradouro com outra pessoa de "sinais que vai investir". São sinais que indicam que aquele que os exibem realmente está disposto a permanecer com a outra pessoa, a ajudá-la em diversos setores de sua vida e que gosta dela.
Muita pessoas, no entanto, não conseguem avaliar corretamente as chances do relacionamento dar certo e acabam se apaixonando unilateralmente por outras pessoas que não interessadas nelas. Um motivo para essa confusão é a facilidade para confundir sinais amistosos e sinais de cordialidade com sinais de interesse amoroso. Mesmo na ausência de quaisquer sinais objetivos de interesse amoroso, ainda assim certas pessoas podem fantasiar histórias segundo as quais seria possível aqueles que elas admiram se apaixonarem por elas e do relacionamento com essas pessoas darem certo. Este tipo de fantasia acontece muito entre adolescentes que se apaixonam por artistas que elas nunca viram pessoalmente. Por exemplo, uma adolescente que entrevistei imaginou que ia se tornar uma modelo famosa e, depois, uma artista de TV e, então, que contracenaria com o artista admirado e que ele se apaixonaria por ela. Essa história possibilitou o aparecimento de um grau de esperança que foi suficiente para que ela se apaixonasse pelo artista referido.
 
Insegurança

Segundo Stendhal, a insegurança é o catalisador do amor. Ou seja, uma certa dose de insegurança ajuda e apressa o nascimento do amor. Eu creio que esse princípio se aplica principalmente a aquelas pessoas que têm um amor do tipo Mania. (Esse estilo foi descrito em um capítulo do meu livro “Relacionamento Amoroso”, que trata dos tipos de amor)
A insegurança sobre algo importante geralmente amplia a nossa dose de atenção para o fenômeno. Por exemplo, a  insegurança quanto ao resultado de um exame faz com que só pensemos nele. O nosso cérebro possui mecanismos que fazem que aquelas coisas que são conhecidas e estáveis saiam da nossa consciência. Fazendo uma analogia com os computadores, o nosso cérebro não tem memória RAM suficiente para manter tudo o que é importante na consciência. Assim sendo, aquilo que já está seguro e é bem conhecido, mesmo que seja importante, sai da nossa consciência para dar espaço para aquelas coisas mais instáveis ou inseguras e, assim, permitir que elas recebam a nossa atenção e providências.
            Muita gente que quer conquistar o amor de outra pessoa aplica intuitivamente esse princípio da insegurança: tenta não deixar a pessoa que está tentando conquistar muito segura do seu grande interesse. Por exemplo, mesmo que esta muito interessado, o conquistador tenta não ficar ligando toda hora para a pessoa que está tentando conquistar para não "ficar babando nela” ou para “ não se entregar de bandeja para ela”.
A dose de insegurança, no entanto, não pode ser exagerada. Esse exagero faz com que a outra pessoa perca o mínimo de esperança de que vai ser correspondida no amor ou que poderia haver uma relação amorosa estável e prazerosa com o conquistador.
Uma boa dose de insegurança também pode ser produzida através da provocação do ciúme. O exagero no uso do ciúme para essa finalidade, no entanto, é contra-indicado porque para alguém se apaixonar também deve haver alguma esperança de fidelidade por parte do parceiro, uma vez que isso esse é um requisito para a existência da qualidade, da estabilidade e da durabilidade do relacionamento.

Método para desapaixonar

Invertendo essa teoria de Stendhal, acabei criando uma maneira de ajudar pessoas a se desapaixonem. Uso muito esse "método de desapaixonamento" no meu consultório. Esse método não produz nenhuma mágica, mas, pelo que vi até agora, ajuda bastante aqueles que estão sofrendo por amor (por exemplo, ajuda aqueles que não foram correspondidos, que deixaram de ser amados ou que foram traídos e, por isso, querem diminuir seus amores pelo infiel).  Mas isso vai ser assunto de um outro artigo.
Para o amor nascer, portanto, é necessário admiração, esperança de reciprocidade. Uma certa dose de insegurança também pode contribuir para o seu nascimento.

Airton Amélio

 
1.  ARON, E. N; ARON, A. Love and expansion of the self: the state of the model. Personal Relationships, New York: Cambridge University Press, v. 3, p. 45-58, 1996.
Publicado por KATHLEEN LESSA
em 30/10/2010 às 02h01
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Os textos da autora têm registro no ISBN. Plágio é crime.