Tentei falar para ele: olha, ela só quer te ver, ela se ilumina quando te vê, há uma parte dela na tua figura, em ti ela sente no seio a própria continuação. Tentei mesmo.
O dia passou como um vento fora de época. Às vezes acontece, em pleno verão, de uma ventania gelada dar as caras sem convite, alguém diria uma brisa que perdeu o padrão migratório.
Pela manhã sibilava igual ao monge. Nem sempre sei a coisa certa a fazer, Senhor, mas acho que só o fato de querer agradar-Lhe já Lhe agrada. Ia de um pensamento a outro, de uma vontade acerca de certo fito, as ponderações borbulhavam, sabia do que viria, mas não como viria, e foi custoso ceder à franca filosofia de que todo aquele que se dá uma emoção feliz crê no bem que ela atrai. A idéia original era espalhar essa felicidade em torno dela.
Tentei falar pra ele: vá com suas pernas.
Mesmo impedido por estranha ética de ser fiador de emoções alheias, nalgum momento julguei que o portador de um afago deve mover-se por si, nem que seja meia mentira, ou antes, raso de acachapante ternura, isso não fará diferença, aquela que receberá a flor vai se iluminar, ela pede tão pouco, dois dedos de prosa, um mimo, dez minutos disso no relógio e uma desculpa qualquer para sair, ela nem vai se lembrar da desculpa, a presença conta, e as coisas da presença, o sorriso branquinho, a juventude. Com ela permanece a vaga e não menos temerária noção de continuar através de outrem.
Nem valeria a pena falar pra ele: você acha que daqui ela vai pra aonde? Fazer a volta ao mundo, se bacharelar em química, montar uma casa num bairro bucólico? Não, meu camarada, ela está no último vagão do último trem, não há nada depois, embora "depois" seja um fator para os que vão, não para os que ficam.
Ontem estava numa mesa ao ar livre com uma professora, um arquiteto, um engenheiro ambiental. O arquiteto assava linguiças, apenas duas linguiças, um acinte, e contava que há dez anos tínhamos Steve Jobs, Jonhy Cash e Bob Hope. Hoje não se tem mais Jobs, Cash e Hope. Rimos. Foi minha vez de cinquentenário passado do ponto subir no púlpito e contar sobre os quatro judeus: Moisés, Jesus, Freud e Einstein. O primeiro dizia que tudo é Deus, o segundo que tudo é Amor, o terceiro que tudo é Sexo e o quarto, tudo é Relativo. Rimos. Seres em volta de uma mesa numa tarde de sábado com céu turquesa falando coisas sérias entremeadas com anedotas ora frutos de presença de espírito, ora memorizadas e repetidas. A professora parecia aturdida face a alunos rebeldes e sem perspectiva, que surtaram semana passada, incendiando lixeiras e soltando bombas numa das melhores escolas públicas de São Paulo.
Domingo transcorreu rápido como sábado. Pessoas diferentes, momentos comensais, somos a tribo que se desloca, só isso, para o que está próximo e poderia estar mais próximo. No meio da tarde cumprimentei uma velha árvore e descobri uma flor mínima, de tão pequena e amarelinha se destacava no intenso verde da folhagem quase em relevo devido à luz de dia nublado. Antes de escurecer me recolhi.
Minha mágica se reduz, boa parte do tempo, em observar ao léu e intermitentemente lembrar de citações oportunas: quando se brinca com idéias, ânsias, desejos, movimenta-se no cerne e ao redor. Quando se movimenta, abrem-se potenciais. Potenciais criam oportunidades e oportunidades conduzem à aventura que é esta vida.
Bernard Gontier
Euclides da Cunha foi um de nossos maiores intelectuais, por sua coragem de pensar. Quando soube da revolta de Canudos, atribuiu-a aos monarquistas. No sertão da Bahia, percebeu que estava errado. Sua coragem de rever o erro valoriza sua obra-prima, Os Sertões. Mas não teve essa grandeza em sua vida pessoal. Casou-se com a filha de um líder republicano. O casamento, porém, não foi feliz. Ele não deu à jovem Ana o amor que ela queria. Ela se envolveu com o tenente Dilermando de Assis. Sabe-se o final da história. Em agosto de 1909, Ana deixa o marido pela última vez. Euclides invade a casa de Dilermando, gritando que vem matar ou morrer. É morto. Dilermando é absolvido.
Por que evocar essa história - que mostra como um grande intelectual foi tão infeliz em sua vida amorosa - quando o assunto da semana é o pai que se matou com o filho pequeno, ao não suportar o fim do casamento? Porque não é a classe social, a formação cultural ou a abertura de espírito para a ciência que capacitam alguém a lidar com o que é difícil no amor, em especial a rejeição.
A tragédia recente é de um pai que não aguenta viver sem a mulher. É imperdoável ele ter matado o filho, ato cruel e odioso. Mas seu suicídio, como o filicídio, decorrem da dificuldade de aceitar a liberdade no amor, no caso, o direito da mulher a seguir seu rumo.
A liberdade no amor não é fácil. Quando concebi um programa a respeito para a TV Futura (que pode ser baixado em www.futuratec.org.br), alguém me sugeriu tratar de casamentos abertos. Recusei. Nada tenho contra quem é feliz numa relação permanente com eventuais casos paralelos. Mas liberdade no amor não é fazer exceções à relação principal. Liberdade no amor é estar livre no (e não do) casamento. É uma realização com o outro.
Comecemos pela falta de liberdade no amor, que existe quando não se consegue tratar do que é mais íntimo. Se tenho uma companheira, espera-se que seja a pessoa mais próxima de mim no mundo, e que tenhamos uma aliança, uma cumplicidade. Se não, é porque algo vai mal. Se não conseguirmos conversar a respeito, piora.
Conversar é uma arte conquistada. Há duas formas de conversa. Uma se desenvolveu na Europa do século 17. É a conversa em sociedade, até mesmo superficial, mas que é condição para o encontro com estranhos ser agradável e a vida social, um prazer. Mas há outra conversa, que é a íntima. Ela inclui assuntos penosos. Um casal pode passar por problemas sexuais, como a redução ou perda do desejo pelo outro. Abordar esse tema é árduo, mas geralmente é melhor fazê-lo antes que um dos parceiros procure uma terceira pessoa.
O que agrava as coisas é que, hoje, toma-se por sinceridade o que é só agressividade. Alguns acham que "dizer o que vem à cabeça" é o mesmo que abrir o coração. Não é. Com frequência, a primeira resposta a algo difícil é a reação agressiva de quem deseja livrar-se de uma situação incômoda. Ofender o outro não é ser sincero. É, apenas, ofender.
Que maturidade é preciso para viver a liberdade no amor? Gilberto Gil, ironizando o slogan da ditadura "Brasil, ame-o ou deixe-o", recomendava: "O seu amor/Ame-o e deixe-o/Livre para amar./O seu amor/Ame-o e deixe-o/Ir aonde quiser". Significa aceitar que uma relação de amor é uma relação de certo risco. Não sabemos se e quando pode terminar. Por isso, é preciso investir nela, e o investimento é afetivo. Por isso Euclides, inteligente e corajoso, não foi o marido adequado para uma mulher que queria um homem alegre, o que ele não era.
O espantoso não é que Euclides, quando não havia divórcio no Brasil e o preconceito era fortíssimo, escolhesse ser assassinado com tanta vida pela frente (pois sabia que Dilermando era bom atirador). O espantoso é que tragédias dessas continuem acontecendo, quando a separação se tornou quase banal, afetando boa parte dos casamentos no mundo.
Talvez haja aqui algo bem difícil. Uma das maiores realizações que se espera da vida é o encontro de um amor de verdade, intenso, pleno. O problema é que não temos segurança dele. Quanto mais me apaixono, maior o risco de me iludir. A paixão - do grego pathos, que designa a situação em que sou passivo (em oposição à ação) e minha razão fica inibida - não é boa juíza de caráter ou de relações, como tem frisado Flavio Gikovate. O encontro emocional intenso pode dar errado. Sua base pode ser frágil. Por isso, parece necessário cada pessoa construir o sentido de sua vida (seu "eixo") sozinha, e balizar a relação com o outro por essa prévia definição pessoal. O amor apaixonado não substitui minha obrigação de saber quem sou, o que eu desejo, o que vou fazer.
Mas, como a paixão não é amor, isso não reduz o sentimento mais profundo pelo outro. Apenas coloca na ordem do dia uma questão que afronta o consumismo afetivo de nosso tempo: a necessidade de converter o entusiasmo passional, que leva ao erro, em amor. A mídia fala muito em paixão, pouco em amor. O amor sempre aparece como algo menor que a paixão. O coração não dispara. Parece coisa de velho. Não assistimos a histórias de amor, só de paixão. Talvez esteja na hora de começarmos a contar histórias de amor, não só de enganos. Aprendemos a viver escutando narrativas. É hora de pensar que "foram felizes para sempre" só é possível com o amor, não com o fulgor passional.
Jornal OESP 22/11/2009
* Atual Ministro da Educação (2015), paulista de Araçatuba, Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, na qual se doutorou após defender mestrado na Sorbonne. Tem se dedicado à análise de temas como o caráter teatral da representação política, a idéia de revolução, a democracia, a república, a cultura política brasileira.
Sempre achei que nascer de frente para o mar faz uma diferença. A gente é mais aberto, mais livre, acostumado desde criança a furar onda, respeitar o oceano, conviver com o sol aberto. A gente tem cheiro de maresia, de iodo, de areia molhada.
Santista, pisciano, fui jogado numa piscina mal aprendi a ser gente. Meu pai era presidente do Clube Saldanha da Gama que ficava na Ponta da Praia, diante do Canal da Barra e em sua gestão construiu a piscina que ainda hoje leva o nome dele. Todas as minhas lembranças se referem a mar, água, o sacrifício de acordar cedo todas as manhãs para treinar, faça sol ou chuva (não havia aquecimento de piscina na época).
Mais tarde, nadar no oceano, pular do trampolim velho (hoje demolido), atravessar o canal a nado (por vezes fugindo dos navios que passavam), indo explorar do outro lado (lá ficava o lado pouco conhecido de Guarujá), ou pegar a baleeira para ir até as praias da Pouca Farinha, do Góes, ou o fechadíssimo Clube de Pesca. E também participar de travessias muitas vezes nadando com os botos ou se desviando das águas vivas. E não do lixo e entulhos como atualmente.
Santos ainda hoje é uma cidade muito especial, muito boa para se viver. Na minha época de garoto ainda era melhor. Rica por causa do café e do porto, cosmopolita (muitos estrangeiros), repleta de clubes sociais ou esportivos, tinha também uma inesperada vida cultural (não é à toa que lá estava Patricia Galvão e de lá saíram Cacilda Becker, Plínio Marcos e mais tarde Bete Mendes, Ney Latorraca, Jandira Martini, Nuno Leal Maia, etc).
Era possível se andar de bicicleta por toda a cidade, plana, sem colinas, era perfeita para se andar, caminhar, mesmo que fosse pela areia (santista tem orgulho de poder caminhar à beira mar, e nem se ofende quando invejosos dizem que ela é cimentada!).
Minha família morava ao lado do trilho do trem da Sorocabana e de fronte ao ponto do Bonde Dez. Quase todos eles eram abertos, com estribos (o fechado estilo Camarão seria mais tarde importado de São Paulo), arejados e confortáveis. Tínhamos fazenda de bananas no litoral sul (parte em Mongaguá, parte em Itanhaém), um lugar repleto de córregos e cachoeiras, onde para consumo próprio tínhamos algum gado, criação de porcos, galinhas.
De tempos em tempos, chegavam latas de gordura animal, de água fresca de nascente e naturalmente bananas. Acho que devo a saúde à natação e às bananas. De tudo que é tipo e jeito, mas principalmente nanica ou branca ( a banana maçã vinha sempre empedrada), amassada com aveia, transformada em bananada ou torta ou cozida ou assada. Cresci à custa de tanto potássio.
Como boa família brasileira éramos descendentes de portugueses, italianos, alemães, russos (e por mãe espanhol e belga). A mesa sempre foi farta. No Natal, o avô exigia Pernil de Porco, mas o forte era o polvo (a provençal/vinagrete e/ou como risoto) e o macarrão da família (um raviolone recheado de ricota ralada, passas sem caroço, salsa picada, ovo inteiro para dar liga e um pouco de sal) com massa feita em casa, o que arregimenta até hoje um esforço coletivo.
Para uma criança, Santos era uma cidade de mil delicias. Lembro ainda do sorvete de São Vicente, a bananinha seca da Leoneza, a queijadinha e o biscoito de polvilho da fabrica Praiano, o frappé de Coco do Yara, a torta Napoleão e o chantilly da primeira confeitaria de frente para a Praia, a Joinville. E também da primeira lanchonete de cachorro quente que se instalou na Praça Independência (chamava-se apenas Hot Dog´s) e marcou época. Do mate que tomávamos com o Paraná na praia do Canal 3 (tudo por lá é referenciado pelos números dos Canais). E para refrescar, as raspadinhas (gelo picado com dose de groselha ou outro tipo de licor).
Meu pai era um bom garfo e desde cedo íamos ao Jangadeiro na Ponta da Praia (que era o máximo em peixes e fruto do mar, até mesmo a sopa de tartaruga, hoje nada ecológica), na primeira cantina da cidade (que foi a Liliana), na famosa Caldeirada de Peixes no Marreiro, no filé Chateaubriand do Atlântico (do Hotel do mesmo nome), o filé até hoje famoso do Chopp Gonzaga onde você come no balcão.
Só mais tarde é que fui descobrir o centro da cidade e seus restaurantes e bares tradicionais: O Chope do Nicanor e seu pãozinho com aliche. O Café Carioca, ao lado da Prefeitura e seus famosos pasteis, o Café Paulista, na Rua XV, centro de negócios e que inventou um creme batido de abacate com vinho do porto . O tradicional Almeida que fica até hoje no fim da Ana Costa, perto terminal dos bondes, o único que fica aberto a noite toda e conhecido por seu caldo Verde. E saudades do requintado Chave de Ouro, em plena Boca, com madeira de Mogno e seus reservados a la francesa.
Mas o maior impacto foi mesmo causado por uma revolução gastronômica na cidade, quando chegou o Don Fabrizio da Família Tattini, que ficava no Edifício Lutécia, ao lado da escola que freqüentava, o Ateneu Progresso Brasileiro. Foi ali que eduquei meu gosto, desenvolvi meu paladar e criei as bases para toda minha experiência culinária. Foi revolucionário na introdução dos réchauds (os garçons é que concluíam o prato na sua frente) e me cativou para sempre com a sobremesa favorita até pelo nome, que me fazia quebrar a cabeça, o chamado Sorvete Quente! Como era possível isso??
Acho que qualquer um é plasmado pela infância e juventude. Passamos a vida muitas vezes correndo atrás daquilo que nunca tivemos ou perdemos ou gostaríamos de ter. Quando sinto o cheiro de maresia, o perfume da compota de goiaba de minha mãe, o show da comida em chamas do Don Fabrizio, as lembranças todas voltam e me aquecem.
E parto em busca, não do tempo perdido, mas do tempo vivido. Quando eu nem sabia que era feliz.
Rubens Ewald Filho
foto: kml
SONHOS
Os sonhos de verão se esfacelam,
criam asas, voam.
Das escuras nuvens repentinas
derramam pranto de dor.
O solo outonal recolhe as lágrimas,
à espera de douradas folhas.
Em cobertor de neve, vencem o inverno,
gestam sementes.
Reverbera o sol da nova primavera;
em poesia etérea
se transmudam os sonhos.
Celinha Figueiredo
imagem: google
Vem, abarca-te
ao meu lado e traz-me o beijo
e, no corpo, o desejo
molhado;
mas não me afagues
demasiado com a palavra volátil,
nem me incendeies o sonho
incauto!
A única coisa que te peço... é isso.
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
imagem: Google