"(...)
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
(...)"
Casimiro de Abreu
PÉS COM PÉS
Havia uma expressão muito comum na boca dos adultos quando eu era criança e que parece ter caído no esquecimento ao longo das décadas. Não sei se vocês a conhecem ou chegaram a usá-la.
A expressão pedia para se ter cuidado com as palavras quando houvesse "gente descalça” por perto.
Era assim que um adulto alertava os demais quando conversavam sobre algo grave ou fato "cabeludo", que as crianças não deviam escutar. Logo mudavam de tema, disfarçavam ou falavam baixo.
Segundo minha mãe, eu vivia de antenas ligadas e orelhas em pé.
Não me recordo dessas coisas e nem dessas atitudes. Apenas de ser questionadora, de viver perguntando o porquê de tudo e assim desnorteando as pessoas. Eu percebia em suas fisionomias um ar de "e agora, o que dizemos pra ela?".
Conta-se que certa vez conversavam minha avó, minha tia e minha mãe no quintal de casa, sobre assunto que se perdeu no tempo, e a expressão foi usada porque eu brincava por perto, aparentemente entretida com alguma outra coisa. “Tem gente descalça”, disseram.
Ocorre que eu vivia descalçada, sob os protestos e broncas de minha mãe, que àquela época tributava minhas frequentes dores de garganta e rouquidão a esse hábito pouco ortodoxo e muito mal-educado. Meninas precisavam estar sempre calçadas. Pés descalços era coisa de moleques!
Elas mudaram a conversa, dissimularam.
Pois bem.
Entrei em casa, voltei calçada e disse que podiam continuar a falar porque agora eu já estava de sapatos!
Todos riram.
Teria eu executado o ato ao pé da letra, inocentemente, ou agido com ironia?
Não sei se tudo se passou exatamente assim, mas foi assim que se imprimiu a lenda.
Continuo gostando de estar descalça. Gosto dos meus pés, não consigo dormir de meias mesmo quando o clima esfria. Costumo deixar o lençol ou a manta um pouco entre as pernas para que eles fiquem descobertos, respirando e, acreditem! , quase sempre estão quentes.
No máximo posso dizer que tive "pé frio" apenas em algumas circunstâncias da vida, num abandono da sorte, que deu no pé!
Na minha primeira estada em Paris, aos vinte e quatro anos, num finalzinho de tarde em janeiro eu caminhava sobre a grama que rodeia um trecho do Sena. A temperatura estava em torno de cinco graus, a bruma descia sobre a cidade e subitamente não resisti: tirei meias e sapatos e caminhei sobre o verde frio e úmido! Houve espanto dos que passavam, é claro. Mas, que sensação deliciosa para mim!
Naquele momento revivi minha liberdade de infância.
Eu fazia a mesma coisa no quarador do quintal da minha casa do Ipiranga quando os dias eram frios.
Fugia ao controle materno, esfregava os pés no verde orvalhado naquelas manhãs paulistanas dos anos 50, até que fosse interrompida pelos gritos de minha mãe, que da cozinha me ordenava entrar, me amedrontando com idas ao médico, lenço molhado de álcool à volta do pescoço, pinceladas de Colubiazol no fundo da garganta... "Quer ter febre, menina? Ficar rouca de novo?"
Vale um convite?
Escolha um gramado verdinho e molhado.
Quero chamar você para estar descalço, ouvir a expressão antiga na boca das pessoas, caminhar nos desenhos das nuvens, pés de anjos, experimentar em retrocesso o sabor daquela liberdade infantil, que todos tínhamos, mesmo quando aparentemente podada.
Pés com pés!
Os meus com os seus!
Faça essa malcriadez qualquer dia.
Sobre minha voz, tornou-se rouca.
Não me importo.
Dizem que é sexy!
imagem: Google
(republicação de 2007)