Tive vários caleidoscópios e sempre fui um.
Formei-me e desmanchei-me muitas vezes.
Quando menina tomava-os entre as mãos com curiosidade, girava-os lentamente, à espera de variadas combinações coloridas. Era comum que eu passasse horas quieta e absorta, os olhos atentos às descobertas.
Sem nem mesmo saber, eu já treinava a desconstrução do olhar.
Adulta, percebi nas mandalas as mesmas formações que na infância alimentaram-me a imaginação criadora.
Era isso então! Os caleidoscópios criavam mandalas.
Ainda hoje observo-as e sinto-me bem: a mente corre livre, apura-se, alimenta-se, fica satisfeita, sossega, esvazia-se, plana serena.
Por vezes algo inesperado ocorria e os caleidoscópios deixavam de funcionar. O jogo de espelhos se partira e era o fim da beleza e da criação. Estabilidade não era qualidade daqueles instrumentos mágicos e, estranhamente, como era bela a instabilidade que provocava diferentes sensações em mim!
Não haveria conserto possível.
Meu pai me prevenira: se caíssem das mãos nada se poderia fazer.
Entendi o fato como morte iminente e senti por antecipação o travo da frustração e tristeza. Lembro-me do quanto eu chorei quando o primeiro exemplar parou de funcionar.
Quem o derrubou?
Mea culpa?
Vieram outros e outros.
Depois das mandalas conheci os mosaicos, as composições geométricas, os recortes e encaixes de materiais diversos, papel, couro, lâminas.
Tudo se juntou em mim.
Similaridade fecunda.
Por isso escrevo.
Escrevo para entender o mistério e a (de)composição da vida, os nós que envolvem a existência... o ato de se viver em constante alerta, na expectativa da finitude, em linha reta com a probabilidade do estrago de um brinquedo.
Sem aviso. Sem remédio. O inesperado e ponto final.
Escrevo para resgatar sentimentos, vontades e sonhos, que em surda aflição diluíram-se... pessoas que fugiram ao meu olhar... lembranças que eu gostaria que trilhassem comigo as mesmas avenidas e veredas até o último dos meus dias.
Escrevo para dar vida às imagens através das palavras, uni-las (unir- me?) e minimizar minha incompletude... Para reunir as diversas outras faces de mim e recompor minha galeria de espelhos, dos mais polidos e reluzentes aos já descascados e trincados, que ainda refletem algo para mim mas não para os outros.
Tudo é saudade. O elo da infância puxado e esticado até o futuro.
Quero dar de face comigo, enxergar-me sendo eu mesma e sendo outra. O olhar próprio e o alheio. Desfazer os paradigmas da sanidade e da loucura, misturar zonas claras e reflexas às escuras e opacas. Surpreender-me e indignar-me. Talvez, apaziguar-me.
Descobrir-se é tarefa para a vida inteira.
Tento retomar a posse da minha casa, habitar-me, recompor-me.
Espanar os dias, a história, os acontecimentos.
As palavras compõem caleidoscópios.
Eu sou um Kaleidoscópio.
música de fundo: "Presente passado" (Alexandre Guerra)