UM BAR, MADRUGADA...
(dueto trovado de amor e humor)
José Augusto de Oliveira & Kathleen Lessa
No bar, fumaças azuis,
Miro-te, em rara luz,
Olhos mel, doces, em plus,
Sob lento som do blues. (JAO)
Olhos de mel derramado,
Não creem num novo amor...
Plange tal sax tocado
O coração sofredor. (KML)
Vendo-a, a esmo, em seus ais,
Busco em seu olhar fugaz,
Ler sua fingida paz,
Sob notas soltas de jazz. (JAO)
Que situação nebulosa...
Eu mal cri na tal mudança...
O amor que outrora foi rosa
Espinhou, rompeu a aliança. (KML)
Com olhar fixo em mim,
Boca rubra, carmesim,
Excita-me ela, o gim,
E os tons do bandolim.
(Entre a meia-luz do bar
Um olhar brilha ao fitá-la...
Sem pensar em se ocultar
Delonga-se a admirá-la.)
Eu desejo-a e venero,
Não posso fingir, eu quero,
De possuí-la, eu espero,
No final deste bolero.
Apesar de desditosa,
Descrente do verbo amar,
Eu fico é toda dengosa,
Enche-me de gás o olhar!
(Ah, ela vagueia, eu vejo,
Caça-me, firme, sem pejo,
E vibram os seus desejos,
Aos sons graves do realejo.)
(Ah, olha-me ardentemente...
Logo se aproximará.
Excito-me de repente!
Como é que me abordará?)
Está longe, sim e não,
Pelos gestos em sua mão.
Será minha a ilusão?
Sofro, ao som do violão.
O que eu quero mas não digo
Meu olhar diz sem querer:
"Sei o que te fazer contigo,
Em ti quero me perder".
Eu e ela, aqui sozinhos,
À espera de carinho,
Ébrios de amor e de vinho
E de dor de cavaquinho.
Fechados nesse sentir,
Que de ambos faz dono e posse,
Impossível é mentir:
Amor com calda e alcorce.
Misteriosa cativa-me.
Eu, ela sabe, domina-me.
Arriba os seios, excita-me.
Em passo doble fremita-me.
Seus lábios pedem arpejos,
Seus olhos pra ele tangueiam...
Lábios dele ensaiam beijos
E os olhos em mim vagueiam...
Esta dor que me consome,
Por ela, nem sei seu nome,
Este olhar que já me come,
A valsa, tango, que fome.
Quando em meus braços cair
Perderá o ar, a fala...
Aguçarei teu sentir,
Prazer em noite de gala.
Ela fuma, finge, inventa,
Deseja-me, ela peca,
Seus seios dançam na lenta
Voz fanhosa da rabeca.
Charmosa, balanço o copo,
Brinco com os cubos de gelo...
Mas não o perco de foco,
E ele intui meu apelo!
Piston em tom de lamento,
Derrama um blues, unguento...
Ela, em olhar atento,
Deseja-me e a alimento.
O desejo está bem claro
No meu corpo já sem eixo...
Não vê como me escancaro
Na dança, no remelexo?
Não sei se ela, não minto,
Pode sentir, eu sinto,
No chorinho infinito,
Os efeitos do absinto.
Nota-se que ele (faminto!)
Quer meu corpo prefulgente...
Eu (talvez por instinto)
Receio esse encontro ardente...
Olhares sutis, velados,
Lábios abertos, finos,
Seios à mostra, empinados,
Acordes de violino.
Nos arcos do violino
Eu imagino seus dedos
Despertando, felinos,
Meus sentidos e segredos!
O seu decote eu invado,
O vinil fluindo um fado,
Em suas dunas embalado
Acalento-me pasmado.
No chorinho que se toca
Seu corpo fica mexido...
Dentro dele algo pipoca:
É a sedução dos sentidos.
Do afagar de um amante,
Suspira e sente a falta,
Em seu silêncio gritante,
Chora por ela, a flauta.
Atrevida, ele decide
De mansinho se achegar.
Sensual, lança o convite:
“Nós podemos conversar?”
Ela, o copo, a espera,
O par em cio açodado,
O seu amor de quimera,
Saudades do bem-amado.
Entre a fumaça néon
E promissores bordejos
Um tango de acordeon
Enche o casal de desejos.
O músico lento, absorto,
Tecla, o piano penteia.
O olhar em ponto morto
Dela, fixo, não vagueia.
No seu charme estonteante
Eu temo sim me envolver...
Outro homem assim galante
De ciúmes fez-me sofrer!
Uma gazela perdida,
Acuada, olhar mortiço.
Aceitas uma bebida?
Beberei eu do teu viço?
Sim... Uma taça de vinho,
Tinto... Como a noite pede.
(Olho em seus olhos e sinto
O tesão com que me mede...)
Ela, costas lindas, nuas,
A coxa, ofertas suas.
Corpo, copo, um vazio.
Olhares quentes, que frio!
Ele me olha interessado
E eu aguardo sua proposta...
Bem trajado e perfumado,
Do jeito que mulher gosta...
- Psiu, ei, garçon, por favor,
Um de absinto pra ela.
E diga, ok?, sem pudor,
Que estou perdido nela!
(Do garçon meio sem graça
Recebi o recadinho...
Que mais ele quer que eu faça?
Que eu me achegue de mansinho?)
O bar, a modorra do cais,
Noite de final de ano.
A quem ela doa seus ais?
A um amante praiano?
(Será que é tipo marujo,
Uma saia em cada cais?
É desses que sempre fujo...
São esses que me atraem mais...)
Não sei. Uma concha, ela.
Eu tenso, em rebuliço.
Não pisca, fica na dela.
E se for sim, um mestiço?
Olhares, bebidas, dança...
Sedução solta no espaço...
Esse flerte não avança?
Quero atirar-me em seus braços!
Costas brancas, coxa nua,
Seu belo olhar de pirraça,
Eu tremo, meu corpo sua,
De hoje ela não passa...
Os olhos de escuro brilho
Sobre os meu fazem flambagem.
Seus olhar é um rastilho,
Incita libidinagem!
Corpo esbelto, perfeito,
Os seios, as coxas, as mãos,
Tentam-me, não tem mais jeito,
Sentirá bolinação.
Já começo a elucubrar
Sobre este homem abrejeirado...
(Será melhor me aquietar?
Vai ver que até é casado!)
O que pensará de mim
Esta pérola mui branca...
(Um demo, um querubim?
Domarei esta potranca!)
Sedutor lobo da noite,
Traços de homem matreiro,
Seu olhar é fogo e açoite,
Devora-me por inteiro.
Espreita-me a tigresa,
Silente ela faz a hora...
Em toda sua realeza,
Come-me, sim, me devora...
Espreita-me o tigre atento,
Entende que faço hora...
Pra que apressar o momento
Deste homem que me devora?
Inacreditável calma,
Esse fechado cismar...
Escravizarei sua alma
E o seu espreguiçar...
Inacreditável charme
Tem esse homem de preto...
Meus seios dão o alarme,
Pedem carícia em dueto...
Meus olhos pousam na gueixa,
Invadem o seu decote,
Uma maçã salta e deixa
Meu coração aos pinotes...
Nesse bar da madrugada,
Muita coisa vai rolar!
Já estou toda assanhada,
O decote a se agitar.
Garçon, um jornal pra ler,
E favor, saia do meio,
Os meus olhos querem ver
O tremor daqueles seios...
Mais que homem mais matreiro,
Difícil de se achegar!
Encaro-o de corpo inteiro
E ele me esconde o olhar!
Meus olhos estão, querida,
Na sua calcinha roxa,
Nessa fitinha perdida
Na brancura dessas coxas...
“Meu nome é Narcisa. O teu?”
Num bilhete eu pergunto.
Ah se ele fosse Romeu...
Puxará algum assunto?
Garçon entregue àquela,
Leve o que eu sinto por ela,
No cheiro de minhas mãos
Neste lenço de algodão...
Por que ele não responde?
Não avança nesse enredo?
Joga charme e se esconde...
Um lenço? Deve estar bêbedo!
Bêbedo, vá que esteja
Este vate, e por quê?
Os seios, ora, mas veja,
A coxa nua em V?
(Olha só o que estás dizendo,
guardo o dito por não dito,
Mas bem que estou merecendo...
encaro o que tá escrito: )
O vento frio em açoites,
Com a força da lua nova,
Findaremos esta noite
No calor de tua alcova?
Pintura de Alberto Sughi
*Obs: escrito e publicado diariamente, estrofe a estrofe, pretendeu contar uma história de paquera, sedução e paixão, à moda de folhetim.
"Estão se consumindo de desejo... paixão incontida... poros latejantes, desaguando em trovas..."(José Augusto de Oliveira)