Sempre achei que nascer de frente para o mar faz uma diferença. A gente é mais aberto, mais livre, acostumado desde criança a furar onda, respeitar o oceano, conviver com o sol aberto. A gente tem cheiro de maresia, de iodo, de areia molhada.
Santista, pisciano, fui jogado numa piscina mal aprendi a ser gente. Meu pai era presidente do Clube Saldanha da Gama que ficava na Ponta da Praia, diante do Canal da Barra e em sua gestão construiu a piscina que ainda hoje leva o nome dele. Todas as minhas lembranças se referem a mar, água, o sacrifício de acordar cedo todas as manhãs para treinar, faça sol ou chuva (não havia aquecimento de piscina na época).
Mais tarde, nadar no oceano, pular do trampolim velho (hoje demolido), atravessar o canal a nado (por vezes fugindo dos navios que passavam), indo explorar do outro lado (lá ficava o lado pouco conhecido de Guarujá), ou pegar a baleeira para ir até as praias da Pouca Farinha, do Góes, ou o fechadíssimo Clube de Pesca. E também participar de travessias muitas vezes nadando com os botos ou se desviando das águas vivas. E não do lixo e entulhos como atualmente.
Santos ainda hoje é uma cidade muito especial, muito boa para se viver. Na minha época de garoto ainda era melhor. Rica por causa do café e do porto, cosmopolita (muitos estrangeiros), repleta de clubes sociais ou esportivos, tinha também uma inesperada vida cultural (não é à toa que lá estava Patricia Galvão e de lá saíram Cacilda Becker, Plínio Marcos e mais tarde Bete Mendes, Ney Latorraca, Jandira Martini, Nuno Leal Maia, etc).
Era possível se andar de bicicleta por toda a cidade, plana, sem colinas, era perfeita para se andar, caminhar, mesmo que fosse pela areia (santista tem orgulho de poder caminhar à beira mar, e nem se ofende quando invejosos dizem que ela é cimentada!).
Minha família morava ao lado do trilho do trem da Sorocabana e de fronte ao ponto do Bonde Dez. Quase todos eles eram abertos, com estribos (o fechado estilo Camarão seria mais tarde importado de São Paulo), arejados e confortáveis. Tínhamos fazenda de bananas no litoral sul (parte em Mongaguá, parte em Itanhaém), um lugar repleto de córregos e cachoeiras, onde para consumo próprio tínhamos algum gado, criação de porcos, galinhas.
De tempos em tempos, chegavam latas de gordura animal, de água fresca de nascente e naturalmente bananas. Acho que devo a saúde à natação e às bananas. De tudo que é tipo e jeito, mas principalmente nanica ou branca ( a banana maçã vinha sempre empedrada), amassada com aveia, transformada em bananada ou torta ou cozida ou assada. Cresci à custa de tanto potássio.
Como boa família brasileira éramos descendentes de portugueses, italianos, alemães, russos (e por mãe espanhol e belga). A mesa sempre foi farta. No Natal, o avô exigia Pernil de Porco, mas o forte era o polvo (a provençal/vinagrete e/ou como risoto) e o macarrão da família (um raviolone recheado de ricota ralada, passas sem caroço, salsa picada, ovo inteiro para dar liga e um pouco de sal) com massa feita em casa, o que arregimenta até hoje um esforço coletivo.
Para uma criança, Santos era uma cidade de mil delicias. Lembro ainda do sorvete de São Vicente, a bananinha seca da Leoneza, a queijadinha e o biscoito de polvilho da fabrica Praiano, o frappé de Coco do Yara, a torta Napoleão e o chantilly da primeira confeitaria de frente para a Praia, a Joinville. E também da primeira lanchonete de cachorro quente que se instalou na Praça Independência (chamava-se apenas Hot Dog´s) e marcou época. Do mate que tomávamos com o Paraná na praia do Canal 3 (tudo por lá é referenciado pelos números dos Canais). E para refrescar, as raspadinhas (gelo picado com dose de groselha ou outro tipo de licor).
Meu pai era um bom garfo e desde cedo íamos ao Jangadeiro na Ponta da Praia (que era o máximo em peixes e fruto do mar, até mesmo a sopa de tartaruga, hoje nada ecológica), na primeira cantina da cidade (que foi a Liliana), na famosa Caldeirada de Peixes no Marreiro, no filé Chateaubriand do Atlântico (do Hotel do mesmo nome), o filé até hoje famoso do Chopp Gonzaga onde você come no balcão.
Só mais tarde é que fui descobrir o centro da cidade e seus restaurantes e bares tradicionais: O Chope do Nicanor e seu pãozinho com aliche. O Café Carioca, ao lado da Prefeitura e seus famosos pasteis, o Café Paulista, na Rua XV, centro de negócios e que inventou um creme batido de abacate com vinho do porto . O tradicional Almeida que fica até hoje no fim da Ana Costa, perto terminal dos bondes, o único que fica aberto a noite toda e conhecido por seu caldo Verde. E saudades do requintado Chave de Ouro, em plena Boca, com madeira de Mogno e seus reservados a la francesa.
Mas o maior impacto foi mesmo causado por uma revolução gastronômica na cidade, quando chegou o Don Fabrizio da Família Tattini, que ficava no Edifício Lutécia, ao lado da escola que freqüentava, o Ateneu Progresso Brasileiro. Foi ali que eduquei meu gosto, desenvolvi meu paladar e criei as bases para toda minha experiência culinária. Foi revolucionário na introdução dos réchauds (os garçons é que concluíam o prato na sua frente) e me cativou para sempre com a sobremesa favorita até pelo nome, que me fazia quebrar a cabeça, o chamado Sorvete Quente! Como era possível isso??
Acho que qualquer um é plasmado pela infância e juventude. Passamos a vida muitas vezes correndo atrás daquilo que nunca tivemos ou perdemos ou gostaríamos de ter. Quando sinto o cheiro de maresia, o perfume da compota de goiaba de minha mãe, o show da comida em chamas do Don Fabrizio, as lembranças todas voltam e me aquecem.
E parto em busca, não do tempo perdido, mas do tempo vivido. Quando eu nem sabia que era feliz.
Rubens Ewald Filho
foto: kml