Há uma leveza na escrita de certos poetas – a leveza de que nos fala Ítalo Calvino - que nos faz ter a sensação de bolhas de sabão multicoloridas que vão subindo, subindo e subindo... E brilham e depois estouram de luz. E se desmancham no ar. Ninguém sabe aonde vão, em que mistérios se escondem. Onde vão chocar seus versos? Em ninhos de sorriso ou de pranto? Em ruas, em praças, em esquinas, em igrejas, nos bares? Onde? Talvez em berços de vento. Ou tomam o mesmo destino das chamas que se apagam e ninguém sabe em que páramos vão brilhar. E algures lançam faíscas. Talvez sejam estrelas, novas estrelas de outro lugar. Assim os poetas insones. Que temperam com versos o sabor das madrugadas.
Essa escrita mágica tem a sabedoria ancestral de todos os que vieram antes, abrindo trilhas. Cada poeta é um pouco de drummond, quintana, manoel de barros ou bandeira, cecília, adélia, vinícius, leminsk e tantos outros, daqui e de além mar – camões ou pessoa, neruda ou verlaine - que pisaram esse solo fértil da poesia leve, livre, solta feito o pássaro que nunca se aquietou em seu ninho. E que está sempre à procura da mais alta montanha de onde possa espiar o mundo e espichá-lo e, ao mesmo tempo, fazê-lo caber dentro de nós. E nos deixar guardá-lo nas retinas feito um papel de parede enfeitado de novos horizontes. E passamos a ser guardiães do tempo. Um tempo sem tempo, mas contemporâneo de todos os vivos e de todos os mortos.
É hora de descobrir que o poeta tem por abrigo o espanto. E o canto de todos os menestréis que sabem a alegria ou a dor de rimar alma e coração. E os poemas são feito grãos de espigas de milho trincando de amarelo por entre o bico das araras azuis nos finais de tarde. E alimentam de estrelas os pássaros da noite. Seriam os poetas como o último voo do flamingo de que nos fala Mia Couto? As mesmas aves que abrem suas asas de esperança por sobre os precipícios que engolem o mundo? Todo poeta é menos que nada e um pouco mais que isso. E tem olhos de além. De olhos vendados, desvendam e abrem clarões no escuro.
Os poemas nos ajudam a ninar e afagar a solidão que atravessa a savana de nossas almas. Feito a imensidão de uma África que nos trouxe de herança o lamento escravo, o mesmo que nos ensinou lições de afoxé, o banzo dos cangerês ao luar e os encantos de iorubá. E somos a ginga da capoeira e somos poeira e somos pó. E somos prisioneiros de nós mesmos, sob o látego de rimas que inauguram saudades de um tempo em que éramos sem ter sido. Irmãos de agônica dor. E da mesma tristura de folhas de outono a arrastar promessas de novas primaveras, sonhos que amadurecerão feito o fruto das lembranças da criança que ainda habita em nós. Então, os livros nos espiam e conversam conosco. E, mesmo sozinhos, jamais estamos sós. E navegamos e seguimos o curso da vida.
O poeta abre-nos os olhos. Ao mesmo tempo os poetas lançam um olhar sobre eles mesmos. E dizem: somos feito o rio que flui para si mesmo, sem foz, que segue apenas a voz do encanto que se espalha nas praias de algum lugar perdido, sem mar. E somos sol e sal. E ardemos e temperamos de emoção o mundo. E somos feito um grão de ternura que se espalha pelo ar. E depois de depois não se sabe mais o que somos... Um mistério que se esvai sem pouso certo. E segue em frente, sempre em frente... Em direção a lugar nenhum. E vai a todos os lugares, pelos mundos do sem fim... Até achar o princípio do que nunca existiu. E assim se faz de alfa e ômega. E onde começa, ali mesmo termina. E nunca tem fim. Nesse momento, o poeta é o verso e o reverso do infinito. E o silêncio contido no peito é o avesso do seu próprio grito. E recebe das palavras a unção bendita de tudo aquilo que, apesar de ser falado, jamais é compreendido em plenitude. O que uma palavra diz, ela mesma esconde. E assim mesmo pressente-se a vacuidade e a plenitude do vazio que não cabendo em si transborda. Caudal de emoções. Poesia é um jeito de sentir.
E beleza é tudo aquilo que se sente e jamais se explica. Por isso, a cada dia, agradeço o dom do entendimento recebido de todos os que nos ensinam os mistérios da entrelinha. E o segredo de cochichar palavras a uma centena e mais uma dezena e outras tantas quantas folhas em branco. E pousam os poetas sobre elas os sonhos que ainda precisam nascer em berços de girassol, em pétalas amarelas do pão da poesia para nos alimentar a cada dia.
Benditos os trigais da palavra que tremulam os seus frágeis pendões pelas campinas. Ali germina o alimento que ninguém vê, mas que nutre a alma do milagre do simples existir. Ali também adormecem as rimas. E depois vão-se embora. Sem métrica, vida afora. Feito grão de vento. Feito o orvalho que acaricia a folha e tem o brilho da prata, o fulgor do ouro, esse tesouro de sol, vida a se reinaugurar em mistérios a cada nova manhã.
O poeta abre o livro e nele insere dois versos breves: "O silêncio é o avesso do meu grito. / E nele mora o infinito."
A bênção todos os poetas, os de antes e os que ainda virão.
O mundo é um barco que só a poesia sabe remar. Tão breve por fora. Tão vasta por dentro.
De volta ao começo. Solta o verso, feito pluma bate asas, evola e se esfuma, se esgarça e se perde pelo ar.
O silêncio é o avesso do meu grito.
Agora, resta-me apenas calar.
José de Castro
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