Contam-se aos milhões os pobres do mundo. Largados às ruas, abandonados em campos improdutivos, assolados pela seca ou alagados por enchentes. Doentes e desesperados, até enlouquecidos de fome e solidão. São homens e mulheres de todas as idades. Pequeninos nos braços das mães, velhos de rostos vincados pelo tempo que não oferece trégua ao seu penar.
Essa massa de humano sofrer também se esparrama por todos os cantos deste Brasil rico de pobrezas extremas. Na metropolitana capital de São Paulo é espantosa a densidade geográfica da miséria visível, enquanto a cidade propagandeia maravilhas ao se candidatar para sediar a Expo Universal 2020. A feira internacional com duração de seis meses e expectativa de 30 milhões de visitantes é o terceiro maior evento do mundo, ficando atrás apenas da Copa do Mundo e das Olimpíadas.
Para hospedar esses dois gigantescos eventos esportivos são construídos no país estádios reluzentes e enormes estruturas esportivas. Mas, como já aconteceu na África do sul, algum centavo de tudo o que virá desses megaeventos irá tocar a vida dos que esfolam suas peles nos asfaltos, calçadas e estradas de chão feitos de asperezas de pedra e cimento?
Em São Paulo, incontáveis miseráveis se esparramam por ruas, praças, viadutos, escadas e marquises de prédios públicos e comerciais. Jogados no lixo da prometida sociedade do bem-estar, quem cuida deles? Animais abandonados parecem merecer mais cuidado do que humanos largados à própria sorte. Quer dizer, nenhuma sorte.
As cercanias da majestosa catedral da Sé, com sua praça monumental, parece um lazareto a céu aberto. Tamanha a densidade de perdidos no dia e na noite. A mesma impressão se tem ao observar humanos sofrentes que se empilham à frente e nos arredores de prédios históricos como o Mosteiro de São Bento, o Pateo do Collegio (primeira construção da cidade de São Paulo), o largo de São Francisco (onde se abriga a histórica Faculdade de Direito), o Museu da Língua Portuguesa, a Pinacoteca, o Museu de São Paulo (Masp).
Em noite de espetáculo, eles se misturam aos que estacionam nas escadarias do Teatro Municipal, na hora do intervalo, para tomar ar fresco ou fumar cigarro. Alguns até arriscam entabular uma conversa sobre o que imaginam que se vê lá dentro do prédio imponente, mas logo espantam a freguesia do mundo da beleza e da arte.
No dia da abertura da exposição “Klumb: a Corte e o Brasil”, no Centro Caixa Cultural Sé, alguns deles entram livremente. O ingresso é “Catraca Livre”, ninguém paga. Vão se achegando uns poucos que ainda podem calçar sapatos rotos ou uns tênis rasgados, e vestir uma roupa que o tempo e a falta de onde lavar não destoam de todo dos apresentáveis visitantes da mostra.
Chegam discretos, quase a pedir perdão por compartilhar o mesmo ar com gente tão bem apessoada, a ouvir com atenção os comentários do curador da mostra. Partilham em silêncio as explicações e os copos de sucos tropicais que os garçons servem no saguão do templo de cultura.
Encaram com olhos ávidos as misteriosas fotos que despertam o olor dos tempos. A mostra expõe imagens captadas em meados do século XIX pelo alemão Revert Henry Klumb, fotógrafo da Casa Imperial. Retratam o Rio de Janeiro do século XIX, durante o segundo reinado, quando a cidade ainda era capital do Brasil. Depois de apreciar as fotos, alguns adentram a sala vizinha para ver “Gepetos de Praga”, mostra da tradição secular de criação e manipulação de marionetes da República Tcheca.
Com suas cobertas sujas e esfarrapadas, ocupam entradas de prédios habitados, no horário comercial, por elegantes rapaces do mundo financeiro que se concentram na Avenida Paulista. Sem lhes pedir licença, poluem com seus trastes velhos a imponente paisagem arquitetônica povoada de mármores, granitos, espelhos, vidros, aço escovado. Delimitam território com “cercas” de papelão, se apropriam de marquises e cantos onde constroem seu mundo paralelo.
Circulam nas vias do centro, ou fora delas, sempre com cobertas jogadas nos ombros. Com o próprio corpo protegem seu bem mais caro, o único abrigo que apara o frio nas instáveis noites paulistanas. Exaustos, enfraquecidos, entorpecidos, dormem, profundamente. Alguns, em posições insólitas, que fazem pensar ao mal que lhes deixou o corpo disforme. Às vezes adormecem aconchegados a algum cão errante ou a outro humano de igual destino.
Domingo de chuvisco intermitente. O Mosteiro de São Bento ecoa, na missa cantada, a dor dos séculos do canto gregoriano. A igreja majestosa está repleta de fiéis e observadores que acompanham a cerimônia oficiada pelos sacerdotes. Raça humana de todas as cores em caras que nem mais revelam a origem. Lá fora, os mesmos esquecidos dos homens e suas divindades.
“Cordeiro de deus que tira o pecado do mundo…”
Na prédica, o sacerdote fala do sacrifício do Messias para salvar a humanidade. À porta, acocorados ao chão, o sermão deve soar familiar para quem sempre ouviu de políticos de todas as cores e pastores de todos os credos a promessa de que outro mundo é possível na terra, mais provável no Além.
Quando o canto se eleva, intimamente solene, as vozes de doçura indizível por uns instantes talvez lhes afaguem o peito. Dilacerado pela herança de sofrimento intrincada na carne e espírito.
“O meu reino não é deste mundo…!” – avisa o sacerdote. Portanto não esperem justiça aqui! Promessa de vida eterna que ecoa vazia para os que têm uma existência de padecimento perene na Terra, para os que nem uma vida terrena vivem, jogados nas correntezas da incúria. Sem chão e sem teto, sem uma porta para abrir à noite e um lugar para chamar de seu.
Do predicador não se ouve palavra sobre os que comandam a invisível imolação cotidiana dos empobrecidos. Como a daquele homem enlouquecido de miséria que lança aos ares folhas de velhos jornais no Viaduto do Chá. Ou a daquele outro que dorme na esplanada da Catedral da Sé em posição inimaginável. Uma das pernas e os braços enrijecidos levantados como cruzes em estradas solitárias, assinalando a morte desigual. A imobilidade de um corpo humano depredado pelo descuido.
É porque não renunciaram ao pecado, como avisa o predicante, que eles vivem deserdados dos bens da Terra? É porque não são filhos da luz, mas herdeiros das trevas, que ninguém se importa com eles? É por que se arrastam nas ruas como larvas que infectam ares, águas e vidas bem vividas que são esquecidos? É por que enfeiam a paisagem rural com suas barracas de lona preta que os senhores das terras os empurram para o nada? Não é um absurdo estes homens e mulheres reivindicarem um chão onde plantar e ainda mancharem com seu sangue o solo de legítimos proprietários de terras sem fim?
Nada no sermão de domingo identifica os fiéis com aqueles corpos feios, mal-cheirosos, drogados, alcoolizados, jogados logo ali, nos cantos, como se mortos fossem e já apodrecessem na sua desgraça que ofende pela feiúra…
Perdoai a quem os tem ofendido? Livrai-os de todo o mal?
Aos ofendidos da Terra nem mesmo protocolar pedido de perdão. Aos pobres que sujam a paisagem e amedrontam os passantes sobram asco,repulsa, medo e desprezo.
Eles são o objeto indireto de um verbo intransitivo.
Chorai! Chorai! Depois dormi!
Venham os descansos veludosos
Vestir os vossos membros!… Descansai!
Ponde os lábios na terra! Ponde os olhos na terra!
Vossos beijos finais, vossas lágrimas primeiras
para a branca fecundação! (…)
Oh! Juvenilidades Auriverdes, meus irmãos: (…)
Diuturnamente cantareis e tombareis.
As rosas… As borboletas… Os orvalhos…
O todo-dia dos imolados sem razão…
Fechai vossos peitos! (…)
Venham os descansos veludosos
Vestir os vossos membros… Descansai!
Eu… os desertos… os Cains… a maldição…
(excerto de Paulicéia Desvairada, Mário de Andrade)