Kaleidoscópio Literário
a expressão de Kathleen Lessa
Capa Meu Diário Textos Áudios E-books Fotos Perfil Livros à Venda Livro de Visitas Contato Links
Meu Diário
27/03/2013 15h39
CRACHÁ NOS DENTES (Lygia Fagundes Telles)

 

                COMEÇO POR ME IDENTIFICAR: sou um cachorro. Que não vai responder a nenhuma pergunta, mesmo porque não sei as respostas, sou um cachorro e basta. Tantas raças vieram desaguar em mim como os afluentes de pequenos rios se perdendo e se encontrando no tempo e no acaso, mas qual dessas raças acabou por vigorar na soma, isto não sei dizer. Melhor assim. Fico na superfície sem indagar da raiz. Aqui onde posso passar quase despercebido em meio de outros que também levam os crachás dependurados no pescoço como os rótulos de garrafas de uísque. Que ninguém lê com atenção, estão muito ocupados para se interessarem de verdade por um próximo que é único e múltiplo apesar da identidade.

                Às vezes, fico raivoso e meu pêlo se eriça e cerro os maxilares rolando e ganindo, quero fugir, morder. Mas as fases de cachorro louco passam logo. Então, componho o peito, conforme ouvi meu treinador dizer, não sei em que consiste isso de compor o peito, não sei, mas é que faço quando desconfio que não estou agradando: componho o peito e volto à normalidade de um cachorro manso. Doce.

                O dono do circo, um hábil treinador de roupa vermelha com botões dourados, acabou por me ensinar muitas coisas , tais como falar no telefone, fazer piruetas e dançar. Quando desisto, ele vem queimar minhas patas dianteiras com a ponta de cigarro aceso, percebe de longe que estou vacilando na posição vertical e vem correndo e chiii...- queima as patas transgressoras até fazer aqueles furos. Então me levanto depressa e saio dançando com meu saiote de tule azul.
                Mas fui humano quando me apaixonei e virei um mutante que durou enquanto durou a paixão. Abrasadora e breve. Escondi os pequenos objetos reveladores e que não eram muitos, a coleira, osso, os saiotes das noites de gala.
                Olhei de frente para o sol.
               Devo lembrar que eu varava feito uma seta salivando de medo os grandes arcos de fogo e eis que o medo desapareceu completamente quando me descobri em liberdade, todo fogo vinha aqui dentro, do meu coração. Fiquei flamejante. Penso agora que flamejei demais e o meu amor que parecia feliz acabou se assustando... era um amor frágil, assustadiço. Tentei disfarçar tamanha intensidade, o medo de ter medo. Vem comigo! eu queria gritar e apenas sussurava. Passei a falar baixinho, escolhendo as palavras, os gestos e ainda assim o amor começou a se afastar. Delicadamente, é certo, mas foi se afastando enquanto crescia o meu desejo numa verdadeira descida aos infernos. É que estou amando por toda uma vida! eu podia ter dito.
                Mas me segurei, ah, o cuidado com que montava nesse corpo que se fechava, ficou uma concha. Não me abandone! Cheguei a implorar aos gritos no nosso último encontro. Desatei a escrever-lhe cartas tão ardentes, bilhetes, repeti o mesmo texto em vários telegramas: Imenso Inextinguível Amor Ponto de Exclamação.

                Era noite quando fiquei só. Tranquei-me no quarto e olhei a lua cheia com sua face de pedra esclerosada. As estrelas. Abracei com tanta força a mim mesmo e comecei a procurar, onde? Fui até à larga cama branca, ali nos juntamos tantas vezes, tanto fervor e agora aquele frio, fucei o travesseiro, as cobertas, onde? Onde. A busca desesperada continuou no sonho, sonhei que escavava a terra. Acordei exausto e enlameado, aos uivos. Nem precisei ir ao espelho para saber que tinha virado de novo um um cachorro. Amanhecia. Tomei o crachá nos dentes e voltei ao circo. O treinador me examinou mais atentamente e fez uma observação bem-humorada, que eu estava ficando velho. De resto, tudo correu sem novidade, como se não tivesse havido interrupção. Dei valor aos meus dedos só depois que os perdi, podiam me servir agora para catar pulgas. Ou para coçar lá dentro do ouvido ou limpar o ranho do focinho quando estou resfriado.
                Com aqueles dedos eu toquei flauta mas não me masturbei; nunca me masturbei enquanto fui ser humano, não é estranho isso?

                Há ainda outras estranhezas, não importa. Aprendi também a rezar. Gosto muito de ouvir música e ficar olhando as nuvens.
                Mas sou um cachorro e quando alguém duvida, mostro as palmas das minhas mãos queimadas.


             [in " A Noite Escura e Mais Eu" - Editora Rocco - 4ª edição] 
              

 

Publicado por KATHLEEN LESSA
em 27/03/2013 às 15h39
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.
Os textos da autora têm registro no ISBN. Plágio é crime.